quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Extraordinariamente Convicta: Que se lixe a Troika , Queremos as nossas Vidas.

Há 2, 3 anos seria para mim quase impensável ser uma das pessoas que apela a uma manifestação com o lema “que se lixe a troika”, que fala em “saque”, “lei da selva” ou cujo texto de apelo termina com “Dividiram-nos para nos oprimir. Juntemo-nos para nos libertarmos”. Participaria, mas apelar e dar a cara por uma manife
stação com essa “retórica”? Muito dificilmente. Porque acharia que era um discurso demasiado forte, exagerado, contraproducente, talvez até demagógico. Hoje, não só não acho, como o acho fundamental, pura e simplesmente porque ele corresponde à verdade e a uma necessidade. Tudo o que fui lendo e questionando, aprendendo, partilhando, observando, vivendo mostra-me que ele é cruelmente certeiro e que deve, por isso mesmo, ser dito, sem meias tintas nem hesitações. Esta “crise” que estamos a viver não é mais do que parte integrante de um sistema que brinca com as nossas vidas, as vidas da grande maior parte de nós, e que pretende continuar a fazê-lo sem qualquer pudor ou vergonha. Se nós deixarmos.
Vim para Portugal há 11 anos. Não estava nada nos meus planos ficar por terras lusas mas acabei por ficar. Lembro-me de ter entrado para a Universidade de Coimbra em 2001 e de, na altura, ter ficado particularmente perplexa com o facto de o valor das propinas ser mais elevado do que aquele que pagava em França, país em que a média dos salários já era mais de duas vezes superiores aos portugueses. Propinas, custos relacionados com o acesso e a frequência do ensino superior para os quais os apoios sociais existentes ficavam, já então, muito abaixo dos existentes no país onde eu tinha nascido e vivido. Hoje, essa desigualdade agravou-se. E esta é apenas uma de entre muitas. Recorrentemente, pessoas da minha família e pessoas amigas residentes em França questionavam a minha decisão de optar por viver em Portugal, país diziam (e bem pois..) com “salários tão baixos”, com “poucas oportunidades no mercado de trabalho”, com um “baixo nível de vida”, com, com, com. Estranho. Ao que parece, pelo que nos andam constantemente a apregoar, essas realidades eram e são compatíveis com o termos “vivido acima das nossas (poucas) possibilidades”. Alguns viveram pois, mas não são com certeza a grande maioria daqueles e daquelas que estão a pagar, e muito caro, por uma crise que não criaram. Estranho. Agora é o Governo que me manda emigrar de novo.
Estranho. Se continuar a querer viver aqui é suposto, enquanto jovem, aceitar e achar natural, “inevitável”, que o meu presente e o meu futuro oscilem entre o desemprego, o sub emprego, a precariedade, os baixos salários, a desprotecção laboral e social, o não conseguir poupar o que quer que seja e ter de recorrer, ad eternum, ao meu pai e à minha mãe quando aparece uma factura maior ou uma despesa inesperada. Se continuar a querer viver aqui é suposto achar natural e “inevitável” um/a jovem ter de adiar constantemente o seu projecto de constituir família, adquirir a sua autonomia, resignar-se a trabalhar a qualquer custo e em qualquer lugar porque, já se sabe, “é melhor isso do que nada”.
Estranho. Enquanto mulher é suposto aceitar, achar natural e “inevitável” que me despeçam, me recusem um emprego ou o acesso a determinado posto por ser… mulher, poder vir a engravidar, ousar pensar em ter crianças ou ser mãe. É suposto aceitar, achar natural e “inevitável” ter, por ser mulher, muito mais probabilidades de aceder a um emprego precário, de trabalhar na economia informal, ou de receber um salário inferior ao que auferiria se fosse um homem. É suposto também tolerar que uma mulher que seja vítima de violência doméstica, e são muitas, não consiga sair de uma relação violenta por não ter autonomia económica, autonomia profundamente prejudicada pelas várias e consecutivas medidas de austeridade que foram e são tomadas. É suposto aceitar, achar natural e “inevitável” que às mulheres seja pedido para regressar ao lar, para serem mães, educadoras, cuidadoras da casa e que assegurem todos os serviços - a saúde , a educação, a protecção social - nos quais o Estado tem, brutalmente, cortado. E é suposto aceitar e achar natural e “inevitável” que, associado às políticas neoliberais, esteja um discurso profundamente conservador pretendendo novamente tutelar os nossos corpos e a nossa autodeterminação .
Estranho. Enquanto filha de emigrantes que saíram de Portugal e entraram ilegalmente em França para fugir da miséria à procura de oportunidades para as suas vidas, as vidas das suas famílias e as das crianças que queriam ter, é suposto aceitar, achar natural e “inevitável” que quem procure fazer o mesmo em Portugal, legal ou ilegalmente, seja tratado como descartável , pessoa a usar quando e para o que precisamos e que se despreza, se violenta, quando já não dá jeito - como estão aliás neste momento a ser tratados/as vários portugueses e portuguesas que emigraram com o eclodir desta “crise”.
Estranho é ter de tomar tudo isto, e muito mais, como inevitável. À excepção da morte - que muitas pessoas verão de resto antecipada com estas medidas que, como todos os indicadores o comprovam, só nos empobrecem, nos retiram direitos essenciais, nos afundam na recessão, nos empurram para um túnel sem luz à vista - nada é inevitável. É tudo fruto de relações de poder, relações de força, interesses, perspectivas, escolhas.
Enquanto jovem, filha de emigrantes, mulher, feminista, cidadã, pessoa: inevitável é denunciar e recusar o que nos apresentam como inevitável. A nós e ao povo grego, espanhol e à maioria das pessoas por esse mundo fora. “Inevitavelmente” tenho o dever de mandar lixar isso tudo e de querer e de exigir a minha , as nossas vidas.

MAGDA ALVES